terça-feira, 6 de setembro de 2016

Cacos de vidro e bicicletas

     Há uns 14 anos, quando eu estava na 4a série (o que equivale ao 5o ano do Ensino Fundamental agora), eu quebrei uma janela de vidro. Foi de uma forma bastante ingênua – para não dizer tola – enquanto brincava de polícia e ladrão. Naquele momento eu era um dos que pegava. Corri atrás de uma colega que, com outro grupo de amigas, entrou no refeitório da escola e fechou a porta. A inteligência-encarnada aqui forçou a porta pelo vidro e este se rompeu. Custei alguns segundos para, depois do baque, perceber que todos olhavam para o meu braço. Tão logo percebi o sangue vertendo do mesmo, meus olhos se encheram de lágrimas. Eu chorava muito. Meu braço parecia ferver conforme se desfazia em vermelho. Não tenho certeza se a diretora não estava na escola, mas sei que foi a vice que veio colocar alguns panos por baixo do meu braço e me colocar no táxi que chamara. O motorista ainda custou a me deixar entrar, pois queria revestir tudo com jornal, garantindo assim a integridade do seu veículo enquanto eu já não tinha muita certeza sobre a continuidade de uma das partes do meu corpo.
     No hospital me colocaram numa maca e me levaram de elevador até uma sala a qual não pude averiguar se era grande ou não, pois viraram minha cabeça em direção à parede mais próxima, de modo que eu não conseguisse ver a operação toda. Devem ter me dado alguma anestesia local, pois só o que senti depois foram as fisgadas do fio negro que entrava à base de agulhadas na minha pele costurando-a. 
     Se eu não lembro ao certo a data, minha mãe deve lembrar melhor, pois acredito que tenha sido ela quem levou o maior susto. Alguém tinha ligado para ela que logo conseguiu sair da gráfica onde trabalhava para ir atrás de mim. Vi quando entrou na sala e também vi quando veio para perto de mim e teve de retornar e sentar de cabeça abaixada numa cadeira próxima. Meu braço aberto a espantou. Mais tarde, recuperada, ela pegou mais informações sobre o que aconteceu e cuidou o melhor que pode de mim. Dez pontos no pulso e quatro no polegar da mão direita. O braço também era o direito. Devo ter forçado o esquerdo apenas contra a parte de ferro da porta.
     No dia seguinte o chão da escola já estava devidamente lavado e seco e logo providenciaram a troca do vidro da porta por um mais grosso, um vidro temperado. Por falar em temperado, eu era bastante “gordinho” na época (obesidade infantil mesmo). Pelo que minha mãe me conta, segundo a médica que me atendeu, foi por causa da minha massa avantajada que não tive nenhuma lesão numa das veias do meu braço. Ser mais pesado do que os meus colegas me salvou naquele dia.
    Pouco de lembrança sobre isso deve ter ficado naquele estabelecimento de ensino, mas em mim, é claro, há uma marca que persiste até hoje. Até por eu ser muito branco e a falta de melanina ajudar nos problemas de pele (o aumento anual de pintas pela extensão do meu corpo me assusta sempre). Então, hoje, olhando para o meu braço, pensei nisso de novo e na ironia que foi a minha forma física tecnicamente pouco saudável (mas com todos os benefícios do bem-estar que uma boa e substanciosa refeição me proporciona até hoje) ter me protegido de uma possível ferida letal.
    Outro caso quase fatal foi-me contato por um amigo um dia desses. Ele teria escapado de quebrar boa parte dos ossos do seu corpo num acidente de bicicleta por causa do seu porte físico. O médico dissera que, por ser um atleta, seus músculos se enrijeceram como um reflexo ao impacto sofrido contra o carro, protegendo seu esqueleto. Se ele não tivesse o hábito de treinar e lutar judô diariamente, seria mais provável que tivesse alguma hemorragia interna e um desfecho muito mais triste do que aconteceu (quebrou um osso da perna, tendo de fazer fisioterapia e andar de muletas por um tempo).
    Refletindo sobre essas histórias dentro de um transporte público lotado, que é onde temos tempo de refletir sobre as coisas hoje em dia, não chego a conclusão simplória de que tanto faz a forma como vivemos. Pelo contrário, isso é tudo o que conta, tudo o que podemos ter é alguma dose de controle no tempo presente. O que passou pode ser revisto, repensado, trabalhado, mas apenas no presente. E o futuro é um tempo que nunca chega, mas podemos sempre fazer coisas no aqui-e-agora que proporcionarão uma aproximação maior dos nossos objetivos. 
     Se meu amigo fosse obeso ao ser atropelado ou eu um mini-atleta ao ter quebrado aquele vidro, provavelmente o desfecho das nossas histórias seria outro e talvez nem pudéssemos contá-las hoje. Mas é sempre com o fato de nossas próprias vidas que trabalhamos. Se desejamos uma vida mais saudável e aproveitá-la com muita disposição, podemos adotar uma dieta balanceada, dormir cerca de oito horas por dia e buscar atividades mais prazerosas. Se, de outra forma, tivermos uma filosofia do tipo you only live once, levando ao extremo a experiência do presente, podemos ter um prazo de vida de cinquenta anos (ou menos) como um leão do que cem como um cordeiro. Daí drogas, junk food, festas e todas as formas de diversão seriam o mais interessante. Nada impede de que a mesma pessoa varie entre esses estilos de vida e não as comparo de forma "a melhor do que b". Mas o interessante é a apropriação que cada um tem de sua vida.
    Um puritano pode tanto se esconder da sua própria autoavaliação numa carapaça moral e no julgamento alheio, quanto um adicto em drogas pode se esconder dos seus problemas usando de cocaína para se pensar mais grandioso do que realmente é. Uma forma de vida mais livre é possível quando podemos nos distanciar e olhar de forma crítica para o que fazemos, mesmo assim, nos percebermos implicados com aquilo que fazemos e investimos energias.
     O acaso é uma variável independente e devemos lidar com o fato de nunca ser possível manipulá-lo totalmente. Mas é só quando enxergamos nossas limitações que também podemos vislumbrar os caminhos possíveis, as veredas por onde podemos realmente trilhar um caminho coerente com o nosso desejo. E, enfim, se nada disso faz sentido, tente apenas evitar fortes pressões manuais à mão nua contra vidros ou não ande de bicicleta sem observar o trânsito.

     Gabriel Bernardi


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